O VELHO E O NOVO
 

 

01 de agosto de 2006

François Mitterrand é uma das personagens francesas do século XX: um político, um homem público é muito mais uma personagem do que uma pessoa. A pessoa morre, é esquecida, a personagem vai sobreviver nos livros ou no imaginário de um povo. Ou num filme. No filme (uma ficção que nasceu de um livro que nasceu de fatos reais) O último Mitterrand (Le promeneur du Champ de Mars; 2007), de Robert Guédiguian, a composição que o ator Michel Bouquet impõe ao desenho de Miterrand é dotada de um naturalismo feroz: em todos os detalhes de interpretação o intérprete se converte em Mitterrand; o presidente moribundo, o homem duma geração em que um determinado tipo de indivíduo, o intelectual de esquerda, que vai referindo seu rol de leituras e experiências de vida que se modificam e o modificam ao longo do tempo, preponderou, este homem é tanto o Mitterrand que todos conhecemos da história e dos noticiários internacionais quanto o fantástico Mitterrand que Bouquet traz para o cinema; Mitterrand-Bouquet: uno, indivisível. Mitterrand, não propriamente o presidente da França por catorze anos, mas o tipo de político e intelectual de que o senhor presidente é uma espécie de símbolo, é uma “personagem” muito conhecida de todos os que vivemos no século XX e, de uma maneira ou de outra, convivemos com algum velho intelectual de esquerda nos anos finais de sua vida; a relação de Mitterrand com seu jovem biógrafo, um jornalista que ele mesmo escolheu para escrever suas memórias (Mitterrand governou a França entre 1981 e 1995 e faleceu de câncer de próstata em 1996) é a base do fascínio da narrativa impositiva e perplexa de O último Mitterrand.

O último Mitterrand está longe de ser somente o desenho de uma figura central de nosso tempo. É o panorama das ilusões e desilusões de uma época. Em Mitterand, como no jovem jornalista, surge o que o dramaturgo alemão Bertold Brecht referia como a necessidade de unir nas personagens o velho e o novo. É algo também proustiano: todas as idades se fundem no indivíduo em qualquer quadra da sua existência, na juventude a consciência de que se vai envelhecer, na velhice a ciência de que já se foi jovem; o jogo de vai-e-vem  entre as duas criaturas (um velho e um novo) transpõe para este filme necessariamente político (embora situado um pouco à margem das discussões diretas) estas investigações transcendentes sobre a metafísica e o tempo.

Se o poeta Arthur Rimbaud se gabava de ter inventado a cor das vogais (por que o U é verde?), Mitterrand insinuou a seu interlocutor (biógrafo?) a cor dos países: não seria a França cinza?

Por Eron Fagundes

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